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terça-feira, 30 de março de 2010

PROJETO POPULAR COM DIREITOS HUMANOS

PROJETO POPULAR COM DIREITOS HUMANOS

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

O texto a seguir, elaborado para o Encontro de Articuladores do Grito, desenvolve algumas observações sobre a temática do Projeto Popular. Utiliza as metáforas da semente, da árvore e do fruto para uma melhor visualização do assunto. Em poucas palavras, procura mostrar como o projeto popular pressupõe direitos básicos de cidadania e como esses direitos, por seu turno, pressupõem uma ação popular contínua. Na base está o lema da 16º edição do Grito dos Excluídos: Onde estão nossos direitos? Vamos sair às ruas para construir o projeto popular! Nem precisaria acrescentar que as reflexões abaixo possuem um pano de fundo e um fio condutor.

O pano de fundo é o contexto de um projeto popular que se encontra numa verdadeira encruzilhada. Do ponto de vista organizativo e político, sofreu revezes, perplexidade, indignação, desencanto... Numa palavra, crise! Mas a encruzilhada simboliza o lado positivo da crise. Ou seja, depois dos golpes sofridos, levantamos a cabeça, damos a volta por cima e nos deparamos com uma bifurcação de alternativas. Encruzilhada supõe escolhas, opções criteriosas, maduras.

O fio condutor é de que o canal político-partidário é um caminho estreito. Por sua natureza, tem como objetivo a conquista do poder. Evidente que não podemos perdê-lo de vista, abandoná-lo aos oportunistas de plantão. Mas também não podemos gastar aí nossas energias vitais. É preciso direcioná-las para o fortalecimento dos grupos de base, das organizações populares, das lutas livres, autônomas e plurais. Numa palavra, ao lado da via partidária, é urgente fortalecer o que Gramsci chama de “sociedade civil organizada”. Não basta eleger representantes do povo, é necessário que este encontre seus próprios canais de participação. E que crie instrumentos e mecanismos de controle do poder público e do orçamento da União. A democracia representativa será uma farsa, se não for complementada por formas diretas de participação democrática.
A semente

De um ponto de vista negativo, o projeto popular não tem geração espontânea, não aparece do dia para a noite. Não nasce na mata cerrada, nem se colhe maduro. Não vem dos centros do poder estabelecido, seja este de caráter sócio-econômico, político-cultural ou religioso. Tampouco se fabrica nos escritórios dos movimentos ou organizações sociais. Não é fruto de laboratório. Não se engendra nos corredores da burocracia, das leis e das instâncias decisórias.

Em termos positivos, o poder popular nasce do chão. Mergulha no solo úmido suas raízes mais profundas. Cresce para baixo, antes de buscar o ar livre, o sol, a luz, o ar fresco. Gesta-se no ventre escuro da terra: lentamente, silenciosamente, laboriosamente. É semente invisível antes de ser planta, folha, flor e fruto. É embrião antes de ser organismo, sonho antes de ser construção. É força energética que revolve o terreno da história, buscando nela sendas ocultas.

O projeto popular se levanta do chão, como a espiga, como o edifício, como a cidade. Jamais vem de cima, ergue-se sempre a partir de baixo. Da mesma forma que a vinha ou o pé de feijão, cresce livre, solto e selvagem. Indomável! Só depois é que vem a estaca que o mantém de pé, a estrutura que o organiza. No seu desenvolvimento, há o tempo da semeadura, há o tempo da maturação e há o tempo da colheita. Dificilmente uma geração acompanha o processo de ponta a ponta. Além do mais, a colheita torna-se nova semeadura, o ponto de chegada novo ponto de partida. Jamais chegamos a um projeto pronto, acabado, absoluto. Cada etapa é trampolim para a etapa seguinte.
Em uma determinada situação histórica, o projeto popular enxerga alternativas, abre veredas novas, descobre potencialidades em ação. É real e virtual ao mesmo tempo, ou melhor, analisa a realidade presente a partir das possibilidades futuras. Mas antes trata de conhecer o passado para não repetir seus erros. É capaz de detectar as fissuras ocultas da atual formação econômica, social, política e cultural, concentrar-se nos pontos de fuga, vislumbrar horizontes desconhecidos. De preferência, ergue tendas nômades, não fortalezas inacessíveis; é caminho, não chegada; é mais movimento que organização. Move-se e faz mover a história. Não tem datas precisas, mas constitui um fluxo indeterminado no tempo e no espaço.

Inicialmente, os protagonistas do poder popular costumam ser nomes e rostos anônimos. Aos poucos, vão ganhando contornos mais definidos. O movimento faz a liderança, não o contrário. Como dizia Antonio Gramsci, “o líder não é aquele que conduz a massa, mas aquele que se deixa conduzir por ela”. Familiarizado com seus problemas, lutas e aspirações, é capaz de sistematizá-las, devolvê-las ao chão da história, permitindo assim um passo avante. Instala-se uma espécie de circularidade dialética: povo e líder se fortalecem mutuamente, um nutre e se nutre do outro, na construção conjunta de um novo edifício social.

Sucedem-se então as etapas: a massa engendra o povo e este cria movimentos e organizações, lideranças, encontros, assembléias, formas de mobilização. A cada esquina, porém, há pedras e espinhos, há obstáculos e contradições. O processo não é necessariamente linear, evolutivo, progressivo. Há avanços e recuos, inimigos desconhecidos podem aparecer, muitos podem passar para o outro lado. As fronteiras de luta nunca são definidas com absoluta precisão. A todo o momento, é preciso refazer as estratégias. O importante é jamais perder de vista o horizonte do projeto. Horizonte que, convém repetir, sempre se afasta à medida que dele nos aproximamos.
A árvore

O projeto popular pressupõe a defesa, a conquista, a ampliação e a universalização dos direitos básicos. Direitos sociais, econômicos, políticos e culturais. Alimento, vestuário, habitação, saúde, educação, segurança, transporte, terra e trabalho, salário justo, lazer, participação, expressão cultural e religiosa... Enfim, tudo aquilo que mantém inviolável a integridade física, a dignidade humana e a cidadania efetiva. Trata-se de buscar vida e vida em qualidade, não apenas sobrevivência. Esses direitos pressupõem, por sua vez, um desenvolvimento justo, solidário e sustentável, voltando não para a acumulação de capital, e sim para as necessidades fundamentais da população. Nesta, é necessário ter presente os setores abandonados, indefesos, excluídos, cuja vida encontra-se mais ameaçada. Com razão pergunta a 16ª edição do Grito dos Excluídos: Onde estão nossos direitos? É uma pergunta que jamais deve calar!

A metáfora da árvore pode nos ajudar a visualizar o crescimento e consolidação do projeto popular. Numa primeira etapa, prioriza-se o trabalho de identificar, mapear e fortalecer as milhares de iniciativas que já estão em curso: padarias comunitárias, hortas coletivas, associação de artesãos ou bordadeiras, construção de cisternas, reciclagem de materiais, grupos de educação e formação, produção familiar, entre tantas outras. Deparamos aqui com mini, micro e médios projetos de economia solidária. Raízes profundas de uma árvore nem sempre visível. Por isso, mais do que “inventar a roda”, trata-se de dar visibilidade a uma série de experiências localizadas, as quais, na medida em que permanecem isoladas, tendem a diluir-se no contexto predominante da economia de mercado.

Passa-se então a uma segunda etapa. Criar e/ou aprofundar canais de integração entre essas iniciativas. Fazer crescerem o tronco e os ramos da árvore. É o trabalho de estabelecer parcerias, estender conexões recíprocas. Um projeto solitário dificilmente contribui para a transformação social. Daí a necessidade de juntar as forças, descobrir canais de comunicação, levá-las às ruas e praças. Somente assim podem se tornar fatores de mudança. Quando os protagonistas dessas experiências coletivas e solidárias se dão conta que não estão sós, as energias se multiplicam. O grito e a luta de uns torna-se o grito e a luta de todos. A árvore amplia sua copa, oferece casa aos pássaros, sombra e frutos aos peregrinos.

Uma árvore isolada no meio do campo, porém, permanece ameaçada pelos ventos, pela tormenta e pelos raios. Tempestades políticas e político-partidárias, que facilmente manipulam o projeto popular em benefício de seus interesses e privilégios. Com frequência, as classes dominantes neutralizam as energias sociais ou as utilizam contra a própria população. Nas últimas décadas, a política brasileira em seus três poderes tem sido cenário de escândalos, uso indevido do poder, tráfico de influência... Dinheiro público que se perde nos ralos escusos e escuros da corrupção. Os privilégios da Casa Grande, dos senhores, seguem contrastando com os favores da Senzala, dos escravos. Mas enquanto os privilégios são intocáveis, os favores são incertos.

O desafio da terceira etapa é ampliar o número de árvores e, ao mesmo tempo, conferir-lhes uma visão mais ampla. Não basta cuidar zelosamente da minha planta, do projeto em que estou envolvido. É preciso erguer a cabeça. olhar a floresta como um todo. Nesta perspectiva, a metáfora da árvore se entrelaça com a metáfora da rede, unir o trabalho local com a visão global. Aqui há um segredo: quanto mais particular uma iniciativa, mais universal ela o será. A universalidade de um projeto popular passa, necessariamente, pela profundidade de uma experiência local. Voltando ao exemplo da árvore, na mesa global da vida, um abacateiro só poderá oferecer abacates na medida em que mantém suas raízes bem fincadas no seu terreno local, extraindo dele os nutrientes necessários à sua existência.

Na história recente do Brasil, não é difícil uma dupla constatação: de um lado, florescem as iniciativas particulares e localizadas nos mais diferentes biomas e regiões do país, respondendo a necessidades bem concretas; de outro, elas ganham uma caixa de ressonância e ampliam sua força nas Semanas Sociais Brasileiras, na Campanha Jubileu Sul, na Consulta Popular, no Grito nacional e continental, nos Plebiscitos, na Auditoria Cidadã, na Assembléia Popular, e em tantos outros movimentos e organizações de natureza mais geral.

O fruto

Os itens anteriores mostram que o fruto é resultado de um longo processo de conscientização, organização e mobilização. Não resulta de um ato único e acabado, mas de um esforço contínuo. Coloca-se sempre e novamente a necessidade de voltar às ruas. De, a cada ano, trazer o grito de seus porões e esconderijos, de seus grotões mais longínquos. Erguer o grito e ocupar os espaços públicos da cidade, do campo, dos periódicos, dos telejornais, de toda mídia.

Desfilar à luz do dia o rosto desfigurado de milhões de famintos, de sem-teto e sem-terra; de jovens sem trabalho e sem rumo, órfãos e perdidos nos caminhos da droga e da violência; de crianças abandonadas, sem carinho e sem infância; dos prisioneiros e das mulheres prostituídas, lesionadas em sua integridade física e moral; dos errantes em êxodo do campo para a cidade, sem emprego e sem futuro; dos imigrantes em situação irregular, explorados em oficinas precárias e insalubres; dos indígenas, quilombolas e afro-brasileiros, secularmente estigmatizados... Enfim da enorme multidão de mutilados em seus direitos fundamentais, privados de família, de calor humano, de cidadania e de uma pátria que os acolha.

A pergunta não quer calar: Onde estão nossos direitos? Se o país é rico em terra e água, em indústria e agroindústria, em petróleo e minério, em grãos e carne, em variadas fontes energéticas, em investimentos internacionais, em alegria, energia e festa, por que o povo em sua maioria continua pobre e excluído? Não, a pergunta não pode mesmo silenciar, está na atmosfera, no ar que se respira. Sua trajetória vem desde as primeiras edições do Grito, em meados da década de 1990. Incômoda e insistente, a pergunta retorna: onde estão os direitos básicos do cidadão brasileiro?

Mas ela retorna com um apelo antigo, mas sempre renovado: Vamos às ruas para construir um projeto popular! De fato, só o trabalho de nossas mãos, o calor de nossos corações e a reflexão de nossas mentes pode fazer a árvore dar frutos. Quem é capaz de revolver a terra e fazê-la produzir, manipular o ferro, o aço e a madeira, erguer casas e prédios, também será capaz de costurar novas relações sociais e políticas. Quem transforma a matéria bruta, pode transformar o espírito. Quem recicla materiais desperdiçados, é capaz de reciclar a economia, a cultura, a própria civilização. Quem gera e cuida da vida, varre e cozinha , ensina e acaricia, ama e trabalha, também pode sair às ruas e às praças para construir um projeto de sociedade justo e solidário. Um projeto social e ecologicamente sustentável.



São Paulo, 26 a 28 de março de 2010

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