Pe. Alfredo J. Gonçalves *
Adital -
Copa do mundo e eleições em 2010, novamente eleições e copa do mundo em 2014, preparação das olimpíadas de 2016: o cenário é de encher arquibancadas, movimentar ruas e praças, colorir as cidades de bandeiras e slogans. Farto material para ocupar as páginas dos periódicos e os espaços dos telejornais, bem como para gerar uma cacofonia sonora e eletrônica sem precedentes. Não é difícil imaginar o uso e abuso que a publicidade e a política podem fazer no terreno fértil de tantos eventos contínuos e fantásticos. Tampouco é difícil trazer à memória o que ofericiam os imperadores romanos no declínio de seu domínio. Desesperados, faziam da estratégia de pao e circo o último recurso para deter a queda inevitável.
Evidente que o Brasil não é um império! E menos ainda um império em ruínas! Ao contrário, na mídia em geral, nas previsões econômicas e até na avaliação de produtores e consumidores, predomina uma euforia demasiado otimista quanto ao futuro próximo e distante. Euforia que, nutrida pela propaganda governamental, tende a aumentar no decorrer do processo eleitoral. As descobertas de petróleo do pré-sal, os investimentos externos, o preço favorável das comidites, a retomada do crescimento, a popularidade do presidente Lula, entre outras coisas, constituem os ingredientes de um cardápio recheado, oferecido a um povo notoriamente acrítico e sedento de boas notícias. Estas, embaladas com o verniz da retórica e da demagogia, venham de onde vierem, irrigam diariamente a terra seca e árida.
Enquanto na antiga Roma a política do pão e circo era minada por uma situação econômica declinante e insustentável, no Brasil de hoje, de acordo com os porta-vozes do planalto central, ela se assenta numa economia sólida e em franca ascenção. É verdade que o panorama mundial globalizado não a exime completamente de possíveis turbulências, mas a posição cômoda do país em realação à recente crise financeira alimenta o fôlego dos projetos em curso. Dá para respirar com certa tranquilidade, alardear vantangem em relação aos governos anteriores, sonhar com um terceiro mandato disfarçado e vender ilusões a preços populares.
Mas tudo isso contém um vírus oculto e de dupla corrosão. Por uma parte, o crescimento econômico brasileiro, histórica e estruturalmente, mantém-se alicerçado em bases fortemente assimétricas. O clássico tripé de sua economia (Caio P. Júnior e Celso Furtado) - latifúndio, trabalho escravo e monocultivo de exportação - não representa apenas uma chave ou uma metáfora para entender o passado, mas também uma janela aberta sobre o presente. A política do latifúndio combinada com o incentivo ao agronegócio, estendida à agropecuária e à agroindústria, às telecomunicações, à indústria em geral e ao grande comércio, segue mais viva do que nunca. Isso sem falar dos lucros estratosféricos do setor financeiro, retaguarda especulativa dos mega empreendedores. Pobres das iniciativas da economia solidária!
O mesmo se pode dizer da metáfora do trabalho escravo. Estão de volta formas de trabalhoarcaicas e execradas, ao longo da história, pelas lutas operárias e camponesas. Basta percorrer o noticiário sobre o trabalho infantil, temporário, escravizado por endividamento - formas extremamente precárias, insalubres e infra-humanas. Quanto ao monocultivo de exportação, o Brasil continua enviado aos países centrais e emergentes toneladas e toneladas de minério, de madeira, de grãos, de carne; para não falar do etanol a serviço do transporte individual, um luxo num país onde os transportes públicos pouco avançaram em conforto e segurança.
Por outra parte, o tripé da economia nos leva a outra metáfora clássica, a da Casa Grande & Senzala (Gilberto Freire). A assimetria no campo da produção se reproduz na área social. O esquema se repete: condomínios fechados coexistindo com enormes favelas, edifícios de luxo dividindo espaço com os cortiços, carros de última geração trafegando lado a lado com ônibus precários e superlotados, serviços de saúde e educação privados em contraste com os públicos, a violência convivendo com sistemas de segurança altamente sofisticados, e assim por diante. O luxo suntuoso e o desperdício, por um lado, a miséria e a sobrevivência no lixo, por outro, caminham de mãos dadas. Semelhante cenário, entretanto, parece não oferecer maiores problemas: na democracia, as oportunidades estão abertas a todos!
Assim proclamam os donos do poder, para usar outra metáfora clássica da literatura polìtica brasileira (Raymundo Faoro). E enquanto dão asas livres ao neoliberalismo e ao mercado total, distribuem pão e circo para as populações de baixa renda. Estas, de olhos e estômago cheios, não dispõem de outra alternativa além de reverenciar e adorar seus eternos mitos. E depositar seu voto na urna, sem a menor possibilidade de uma escolha livre, autônoma e consciente.
Felizmente, em variados pntos do país, vão surgindo pequenas luzes. Canais alternativos de participação popular apontam para a possibilidade de um maior controle do poder e do orçamento públicos. Apontam também para uma democracia que não se limite a surfar nas ondas das intrigas políticas, mas tenha a coragem de mergulhar nas águas profundas das decisões econômicas. Por exemplo: o quê produzir? Para quem? Em que condições? Como fazer uma distribuição mais equitativa? Como dividir os excedentes e os lucros? O que significa fugir da tirania do crescimento a qualquer preço, em vista de um desenvolvimento justo, solidário esustentável? Como defender e prolongar com qualidade a vida humana no planeta, respeitando as demais formas de vida e a sobrevivência da própria Mãe Terra?
Eis as perguntas que uma verdadeira democracia, sem adjetivos, deve responder. Uma democracia onde o poder político seja orientado por princípios éticos e possa interpelar o sistema econômico mundializado. Uma democracia com os pés firmemente fincados no aqui e agora, e os olhos fixos num horizonte global e futuro. Uma democracia com mecanismos e instrumentos livres e autônomos, conscientes e plurais, blindada contra todas as formas de manipulação. Nos termos de Gramsci, trata-se de reforçar as organizações de base da sociedade civil, sem desconhecer a realidade da política partidária, mas sem se deixar arrastar pelo canto de sereia que costuma acompanhar seus discursos e promessas.
* Assessor das Pastorais Sociais.